Alex Paulo Santa Anna
Era 24 de agosto de 1954, Getúlio Vargas trancou-se em seu quarto no Palácio do Catete e, segundo a historiografia oficial, às 04:15, mirou um revólver contra o próprio peito e desferiu um tiro, causando-lhe a própria morte. Com esse gesto, Getúlio Vargas saiu da vida para entrar na história, como ele mesmo previu em sua carta testamento, adiando em 10 anos o iminente golpe militar e político que estava sendo gestado no seio do Exército brasileiro. Com a comoção nacional criada em virtude da morte daquele que muitos consideram o melhor presidente da história do Brasil, Getúlio encurralou as Forças Armadas que foram obrigadas a recuar de volta a seus quartéis (de onde nunca deveriam ter saído). Entretanto, em 01 de abril de 1964, a situação de completa instabilidade política e econômica vivida em nosso país abriu caminho para que o Exército, através do uso da força, derrubasse um presidente constitucionalmente eleito, João Goulart, e instalasse um regime de trevas que duraria 21 anos. Com efeito, a história brasileira é, em sua essência, marcada pelas rupturas institucionais, pela quebra da legalidade e pelo desrespeito à Constituição, ao regime democrático e aos direitos fundamentais. Fomos o último país da América Latina a tornar-se independente. Fomos o último país da América do Sul a tornar-se República (através de um golpe militar). Fomos um dos últimos países do mundo a acabar com a escravidão, por razões de ordem econômica e não humanitárias. Mas isso será objeto de um outro artigo.
Mas voltemos àquele fatídico início de 1964 que culminou com a queda de João Goulart e a instauração do regime militar.
Aliás, para entender o que ocorreu em 01 de abril de 1964 (data em que o golpe efetivamente se concretizou e não em 31 de março, como quer fazer crer a historiografia oficial, para evitar comparações e ironias com a data 01 de abril, celebrado como o dia da mentira.
Com a inesperada renúncia de Jânio Quadros, deveria assumir a presidência da República João Goulart, eleito, por eleições diretas, vice -presidente da República em uma chapa separada. Pois é. Pasmem. Naquela época, no Brasil, votava-se para Presidente da República em uma chapa e um vice presidente em outra chapa separadamente. Trata-se de uma jabuticaba brasileira, que não poderia dar certo e não deu… mas era o que previa a Carta Republicana de 1946. Acontece que Jango era considerado o herdeiro político de Getúlio Vargas e era associado ao pensamento de esquerda, de modo que era visto com extrema desconfiança pelas elites dominantes. Com uma manobra política, implantou-se, em nosso país, um regime parlamentarista para retirar os poderes de Jango, tendo como primeiro ministro Tancredo Neves (aquele que foi sem nunca ter sido).
Então, realizou-se um plebiscito e o povo decidiu pelo retorno do presidencialismo, passando Jango a ter os poderes de Chefe do Poder Executivo.
Jango então assume a presidência da República com uma agenda que buscava a implantação daquilo que se chamou de reformas de base – reforma agrária, tributária, educacional, urbana (até hoje ainda falamos nessas reformas. Por que será? E por que as reformas de caráter estrutural nunca foram efetivamente implementadas em nosso país?
Ora, tratava-se de reformas de cunho essencialmente estrutural que buscava enfrentar as profundas desigualdades sociais e econômicas que nos assolam desde as caravelas e isso gerou o pânico das classes dominantes.
Era preciso, portanto, retirar aquele presidente que estavam propondo mudanças de caráter social. Sucede, entretanto, que, Jango, além de não ter a mesma habilidade política de seu mentor, Getúlio Vargas, não tinha apoio no Congresso para implantar as denominadas reformas estruturais, por razões óbvias. Assim, ele passou a percorrer os país, realizando comícios, em busca de apoio popular. Ao mesmo tempo, que, de ponto de vista popular, as propostas de Jango ganhavam apoio, as articulações para a sua derrubada tornaram-se cada vez mais fortes.
No Exército brasileiro (que nunca foi legalista) fortalecia-se a ideia da necessidade de uma intervenção armada para por fim àquilo que se denominou de “ameaça comunista”. Ora, o movimento comunista no Brasil nunca foi forte e articulado o suficiente de forma a representar, em algum momento histórico, um efetivo risco de instauração de uma sociedade socialista nos moldes cubanos ou soviéticos. Isso nunca existiu. Foi apenas uma bandeira (muito bem utilizada), pela denominada “direita brasileira”, que sempre defendeu a manutenção do status quo, para criar na classe média (sempre ela), a ideia de que Jango defendia um regime comunista e criasse um caldo de cultura que justificasse a realização do golpe.
Saliente-se que Jango havia sido eleito, diretamente, para o cargo de vice – presidente da República, com mais votos do que o próprio Jânio Quadros. Mas, inegavelmente, Jango representava uma ameaça porque estava tentando, ainda de que forma errática, implantar mudanças na estrutura social de nosso país e isso sempre foi inadmissível no Brasil.
Além disso, vivíamos em plena Guerra Fria, em meio à disputa entre EUA e URSS, que se utilizavam de todas as formas para estender a sua influência a outros países, inclusive com a ajuda logística, financeira e até armada para a instauração de ditaduras por todo o mundo. Não por acaso, diversos países da América Latina, entre os quais, Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile sofreram golpes de estado e foram implantados regimes autocráticos, através do incentivo direto de Washington.
No livro “A Ditadura” de Elio Gaspari, o mais completo estudo documental acerca do regime de 1964, era evidente a preocupação dos EUA com o governo de Jango e a efetivação das denominadas “reformas de base”. A existência de um Brasil fortalecido economicamente fora da órbita do Tio Sam era (e é) um grande perigo para o império norte-americano. O Brasil, pela extensão territorial, pela posição geográfica estratégica e pelo imenso mercado consumidor, não podia cair, de algum modo, sob a influência da URSS ou realizar algum movimento que representasse um não alinhamento com os interesses dos Estados Unidos da América.
Por outro lado, a elite agrária e empresarial brasileira, sempre associada e dependente do capital internacional, e que, historicamente, sempre se beneficiou da situação de extrema desigualdade social que nos caracteriza em virtude da nossa enorme concentração de renda, não iria aceitar passivamente algum tipo de concessão às classes mais populares.
Em meio ao agravamento da crise política, alguns setores do Exército ainda resistiam à ideia de golpe. Mas a situação de Jango se tornava cada vez mais difícil. Encurralado no parlamento, sem apoio da classe média, com a economia patinando, sem sustentação política e sem o apoio das Forças Armadas, a sua queda era apenas uma questão de tempo.
Então, as Forças Armadas, com o apoio do empresariado, do capital nacional e internacional, de grande parte da classe política, de setores conservadores da Igreja Católica e da burguesia e sob a orientação direta da Casa Branca, desferiu o movimento que derrubou Jango e colocou na presidência da República o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, o primeiro general declarado presidente. Mas, o próprio Castelo Branco confessaria, anos mais tarde, que o objetivo do golpe era tão somente derrubar João Goulart, estabelecer a “paz social” e promover as bases para a próxima eleição presidencial que ocorreria em 1968. O próprio general disse expressamente nós não tínhamos projeto de poder, não sabíamos o que fazer no governo, nosso único e inicial objetivo era retirar o lunático do João Gourlart, devolvendo o poder aos civis em 1968.
Mas, havia um grupo no Exército, que logo se tornou preponderante, a chamada Linda Dura, que defendia a ideia de que o povo brasileiro não tinha a capacidade de eleger um presidente da república e que caberia às Forças Armadas conduzir os caminhos do país rumo ao desenvolvimento. O povo brasileiro não tinha maturidade democrática para conduzir a si próprio e a democracia representava um sério risco a ser combatido. Além disso, se ocorressem eleições em 1968, o candidato que se apresentava com maior chances de vitória era Juscelino Kubistchek, em quem as Forças Aramadas nunca confiaram.
Neste sentido, em 13 de dezembro de 1968, veio o golpe dentro do golpe com o Ato Institucional n. 05, em que se instalou um regime de terror patrocinado pelo Estado Brasileiro. A tortura foi efetivamente adotada como política de Estado, como mecanismo de manutenção do regime. O arbítrio foi institucionalizado e o Congresso Nacional foi fechado. Centenas de mortes e desaparecimentos, milhares de prisões arbitrárias, exílios, cassação de mandatos, extinção dos partidos políticos, censura a jornais, artistas, TVs, poetas, músicos, suspensão do habeas corpus, suspensão das mais elementares garantias constitucionais, fechamento do Congresso, generais que simplesmente revezavam o poder por indicação do Exército. Isso tudo caracteriza um regime de exceção, uma ditadura. O simples fato deles maquiarem o regime com a suposta eleição indireta dos generais para presidente não retira o caráter autoritário e antidemocrático do governo militar. Alguns chegam a afirmar que não tivemos ditadura porque não havia ditador. Ora, historicamente, as ditaduras sempre estiveram associadas a algum líder, como Pinochet, Hitler, Mussolini, Franco e Getúlio Vargas. Mas não é essa a essência de um regime ditatorial. O que caracteriza a existência de um estado autoritário é a inexistência de limites ao poder do Estado, é o arbítrio, o desrespeito às leis e aos cidadãos que não tinham a quem recorrer. Infelizmente, esse revezamento de presidente – dos generais – foi uma forma de dar uma certa aparência de legalidade e legitimidade que o sistema nunca teve, mas que ainda serve, como estamos vendo, para enganar muitos. Mas, podemos observar que esse método, embora pueril e rasteiro, serviu para que muitos acreditassem que se tratou de uma “ditabranda” como nomeou a FOLHA DE SÃO PAULO. Um dos jornais que apoiou o GOLPE MILITAR DE 1964 e que, posteriormente, retirou o apoio em face das milhares de atrocidades cometidas.
Com efeito, o Poder Judiciário havia se acovardado, o Poder Legislativo subjugado. Qualquer pessoa poderia ser presa e torturada sem qualquer justificativa e sem acusação formal. Qualquer um de nós podia ter a casa invadida, sem a necessidade de um mandado de busca e apreensão. Se um soldado, cabo ou general, simplesmente, “cismasse” com qualquer um de nós, poderíamos ser levados para o interior de quartéis ou delegacias e seríamos submetidos a todo tipo de tortura – choques elétricos nos órgãos genitais, pau de arara, pancadas, afogamentos e sevícias. Mães eram estupradas na frente de seus filhos ainda crianças. Esposas eram seviciadas na frente de seus maridos. Arrancavam-se as unhas. Mutilavam-se corpos. Seres humanos apanhavam como animais. Muitos não resistiram às longas e dolorosas sessões de tortura e vinham a óbito, como ocorreu com Vladimir Herzog, em que o próprio Poder Judiciário federal reconheceu que se tratou de homicídio, nas dependências de uma unidade do Exército brasileiro, e de alguém que se encontrava sob a custódia das Forças Armadas.
Infelizmente, nosso povo não conhece a sua história, de modo que o simples fato de estarmos tendo essa discussão 55 anos depois (se houve ou não golpe, se foi ou não ditadura), demonstra que a “ditadura” atingiu, em parte, os seus objetivos. Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la.
A democracia pode ter os seus inúmeros defeitos, como afirmava Winston Churchil, mas, nós, enquanto humanidade, ainda não descobrimos uma forma melhor de organização social, política e jurídica. Uma democracia pressupõe o respeito à legalidade, a separação de Poderes, a existência de direitos e garantias fundamentais e o respeito à dignidade da pessoa humana. Devemos aperfeiçoá-la. Aprimorá-la. Criar mecanismos de controle, educar o nosso povo, desenvolver a nossa percepção como cidadãos e não como súditos. Não precisamos de messias, ditadores ou tutores. Precisamos de cidadania e isso somente será possível em um regime democrático.