Inegavelmente, O Auto da Compadecida é um marco da literatura, da TV e do cinema brasileiros. Escrito pelo paraibano radicado em Pernambuco Ariano Suassuna como peça de teatro em 1955, o texto virou série televisiva exibida em quatro episódios na Rede Globo em 1999. No ano seguinte, foi reeditada e adaptada para estrear como filme nos cinemas, dado o sucesso das desventuras que tem suas raízes na literatura de cordel sertaneja.
É claro que a popularização veio com a versão audiovisual empreendida por Guel Arraes na virada do milênio, quando o cinema brasileiro passava por um período de retomada e as séries televisivas ainda ganhariam a popularidade dos últimos anos. Tudo isso faz do primeiro O Auto da Compadecida não apenas um marco dentro do audiovisual brasileiro, mas também um grande elogio à cultura popular nordestina.
Se pensarmos na enxurrada de continuações fílmicas feitas ultimamente e na onda de saudosismo que tem tomado de assalto a cultura contemporânea, demorou muito para que o filme tivesse a sua continuação. 25 anos depois do primeiro episódio da série, O Auto da Compadecida 2 chega aos cinemas com mais pompa e grandiloquência, ainda que se escore na nostalgia para reprocessar velhos artifícios narrativos.
Guel Arraes segue à frente do projeto, dessa vez dividindo a direção com Flávia Lacerda, que foi assistente de direção do filme/série anterior. E agora o caminho de produção deve ser o inverso: pensado como filme, não deve demorar para ganhar uma versão televisiva no próximo ano, como tem sido o costume dos produtos Globo.
De toda sorte, o filme tenta resgatar o sucesso de bilheteria das comédias nacionais que viram o público diminuir nos últimos tempos. Aqui, o trunfo é o retorno das figuras icônicas de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello) com suas peripécias e trapalhadas, fabuladas em um tom barroco e caricato.
A trama se passa 20 anos depois dos acontecimentos do filme anterior e atualmente os amigos estão separados. Não se sabe ao certo o paradeiro de João Grilo, mas Chicó permaneceu na cidade de Taperoá contando a impressionante história de ressureição do amigo, visto no final do primeiro filme. Não demora muito para que João, tido pela população como figura ilustre, retorne e encontre o lugar um tanto modificado.
Menos ingenuidade
O principal conflito com que eles se envolvem é com o coronel Ernani (Humberto Martins) que modificou os limites de suas terras a fim de tomar para si o poço que abastece de água os moradores da cidade, fazendo com que a população fique dependente do coronel. Contra ele, aparece o radialista Arlindo (Eduardo Sterblitch), com quem que vai bater de frente nas urnas, já que ambos se candidatam a prefeito da cidade.
Claro que a dupla de amigos atrapalhados vai se meter na contenda, também com a ajuda de Arlindo do Amor (Luis Miranda), um malandro carioca que possui seus interesses escusos, da mesma forma que Clarabela (Fabíula Nascimento), filha do coronel Ernani, joga seu charme para cima de Chicó, mas guarda segundas intenções.
O antigo interesse amoroso de Chicó, a bela Rosinha (Virgínia Cavendish), também retoma para a cena, mas dessa vez com uma postura mais empoderada e independente, tendo se tornado caminhoneira de profissão, ainda que enrabichada pelo gracioso mentiroso.
São personagens que se mostram muito mais altivos e menos ingênuos na paisagem de um sertão que ainda reprocessa velhos arquétipos humanos, popularizados pelas narrativas orais, em um ambiente que também se modificou com o tempo e com a modernidade. Eles acabam assumindo posturas políticas que dizem muito sobre as relações de poder em um lugar carente e cheio de mazelas como esse, ainda que repleto de riquezas culturais.
Mas a entrada desses personagens no filme se dá de modo muito pontual, o que não deixa de revelar certa propensão episódica à trama, o que sugere um maior aproveitamento de cada um deles em um formato mais espaçado, como uma minissérie. Ou antes, apenas revela certa fragilidade do filme em amarrar uma trama mais coesa e consistente.
De qualquer forma, a obra busca reproduzir o mesmo sentido de humor e graça que o público já associou a O Auto da Compadecida, porém atualizado com uma versão de Nordeste bem mais estilizada. A própria robustez de orçamento do novo filme permitiu criar um ambiente mais teatral e pomposo, que se reflete nos cenários artificiais, nas luzes exageradas e no uso de efeitos visuais mais modernos.
Imaginário popular
Se o primeiro filme/série foi feito com uma produção mais modesta e se ancorava tanto no brilhante texto de Suassuna como na ótima interação entre os atores, O Auto da Compadecida 2 é um filme mais robusto em termos cênicos e estéticos, porém perde um tanto na construção narrativa de sua trama.
A principal diferença é não se sustentar mais em um material original prévio, apenas associado aos personagens e ao tipo de humor que o escritor criou (o roteiro é de autoria de Arraes em parceria com João Falcão). Nachtergaele e Mello continuam donos de um carisma imenso e, juntos em tela, performam um companheirismo latente, assim como os demais atores parecem estar bem à vontade no filme.
No entanto, falta aquela sagacidade narrativa que fazia das peripécias e confusões dos personagens um labirinto de desordens e saídas espertas que se davam pelas rápidas sacadas que eles tiravam da cartola no meio das discussões. O que restou aqui foi a leveza do texto, com a mesma intenção de graça, mas sem a malícia de antes.
Com isso, a escolha do filme é repetir certas estratégias narrativas que já estavam lá atrás, incluindo cenas e falas icônicas, assim como chega a reprisar mais um julgamento no além entre Deus e o Diabo (interpretados pelo mesmo Nachtergaele) com a intervenção de Nossa Senhora (vivida dessa vez por Taís Araujo). Em nome do saudosismo, parecia não haver outra saída. Tinha que ser assim.
Fonte: A Tarde