Os funcionários vinham alertando havia anos que a estrutura do prédio carecia de maiores cuidados. Mas ninguém ouviu (ou fingiu que ouviu). Quando o fogo chegou aos andares mais elevados, onde ficava boa parte do acervo, ele ganhou força. Mas não era imbatível. O incêndio só pareceu incontrolável porque o sistema de água do museu deixou os bombeiros na mão, e eles precisaram dar um jeito para controlar as chamas. Nenhum funcionário ou visitante foi ferido, pois a instituição já estava fechada. Décadas de pesquisa viraram cinzas. Um osso de 160 milhões de anos que pertenceu a um dos maiores seres vivos que já caminhou sobre a Terra. Ao saurópode se juntaram coleções de borboletas e milhares de documentos históricos. Gerações de crianças que visitaram aquele prédio agora assistiam, tristes, envergonhadas, raivosas, àquilo que o fogo engolia. Uma lástima para uma grande metrópole. Uma vergonha para um dos maiores países do mundo.

incêndio do Museu Nacional de História Natural de Nova Déli aconteceu outro dia, em abril de 2016. Mas a tragédia indiana, somada à ainda ardente e ainda não esquecida tragédia brasileira de domingo, pode levar a crer que incêndios em grandes “equipamentos culturais”, como os entendidos dizem, são comuns. Não são.

A destruição de museus e grandes bibliotecas é algo relativamente corriqueiro, a história ensina, infelizmente. Mas por outros motivos. A Unesco compilou os maiores episódios do tipo no século 20. Acervos inestimáveis acabaram na vala de formas um tanto variadas. Há relatos de destruição por (fiquemos só em um exemplo para não cansar sua disputada leitura):

  • Enchente (em 1966, o rio Arno inundou a Biblioteca Nacional Central, em Florença, e danificou 1,2 milhão de itens);
  • Rebelião (em 1947, durante o sanguinário processo de independência dos britânicos e separação entre Índia e Paquistão, duas das maiores bibliotecas do subcontinente, em Lahore, foram devastadas);
  • Terremoto (a Biblioteca Nacional da Nicarágua foi atingida duas vezes: em 1931 e 1972);
  • Terremoto seguido de incêndio (em 1923, algumas instituições japonesas foram afetadas. Pinturas, manuscritos chineses e documentos imperiais do século 19 estavam entre os 770 mil itens perdidos);
  • Furacão seguido de enchente (o Museu Corning, nos EUA, dedicado à arte em vidro, sofreu perdas durante a passagem de um furacão pelo estado de Nova York, em 1972).

Em tempos de guerra, é outra miríade de destruição:

  • Bombardeios aéreos (Frankfurt, Hamburgo, Kiel, Leipzig, Magdeburg, Nuremberg e Stuttgart estavam entre as cidades alemãs que perderam centenas de milhares de obras em suas instituições, atacadas pelas bombas dos Aliados durante a Segunda Guerra);
  • Saques, pilhagens e queima de obras em nações ocupadas (dos 22,5 milhões de livros das bibliotecas polonesas, os nazistas queimaram 17 milhões. A Tchecoslováquia perdeu 2 milhões de obras);
  • Linha de tiro entre os dois lados (Chartres, Dieppe, Metz e Paris, entre outras cidades francesas, perderam milhares de itens valiosos durante a retirada dos nazistas).

Há também os casos horrendos de perseguição política, que culminavam em queima de livros proibidos e obras de arte degeneradas. Nazistas destruíram instituições judaicas na Polônia. A Revolução Cultural (1966-76) reduziu a pó, em dez anos, milênios de cultura chinesa. Entre 1976 e 1979, o Khmer Vermelho acabou com mais de 80% dos livros e documentos do Camboja e seu riquíssimo passado.

Dos 127 episódios listados, a maioria aconteceu durante conflitos armados, especialmente a Segunda Guerra, como é de se imaginar. Somente 10 casos foram incêndios em tempos de paz. Eles ocorreram em países ricos, como os Estados Unidos (quatro vezes), a Holanda (uma) e o Reino Unido (uma), mas também em uma nação pobre, o Peru (uma vez). Ocorreram em monarquias, como a Itália de 1904 (uma), e no socialismo (União Soviética em 1988).

As causas de algumas dessas tragédias permanecem nebulosas. Somente em uma delas o incêndio foi comprovadamente criminoso, provocado por um homem, que ateou fogo na Biblioteca Central de Los Angeles, em 1986 (1,1 milhão de itens danificados ou destruídos). Os outros foram provocados por falhas técnicas, azar, picaretagem ou uma mistura dos três. No Reino Unido, fios desencapados. Na URSS, negligência com regras básicas de segurança.

Todas essas instituições tiveram perdas na casa das dezenas ou centenas de milhares de itens. As exceções são a já citada biblioteca de Los Angeles e a biblioteca da Academia de Ciências de Leningrado (atual São Petersburgo), que teve 4,1 milhões de itens danificados ou totalmente destruídos, em 1988.

A maioria desses lugares são centros de importância regional. Ficam em Norwich, na Groenlândia ou no interior de Massachusetts. Salvo a Biblioteca Nacional do Peru, em Lima, vítima de um incêndio em 1943, a biblioteca da Universidade Nacional de Turim (incendiada em 1904) e a academia russa, nenhuma dessas instituições figura entre os grandes pontos de importância acadêmica, histórica e cultural de seus respectivos países.

Isso coloca o Brasil na infame e ultrajante condição de conseguir algo bem raro na história: destruir a mais antiga instituição científica e um dos principais museus do país apenas com negligência e falta de recursos. Não precisamos de um invasor estrangeiro, um ditador lunático ou um maremoto que afogasse a zona norte do Rio de Janeiro. Perdemos para o trivial. Algo tão descarado que gerou comparações que são um tapa na cara. O orçamento para a lavagem dos carros da Câmara dos Deputados é quase três vezes maior do que o dinheiro repassado ao Museu Nacional, informa o El País.

A verba caiu nos últimos cinco anos, mas o descaso do governo federal é algo que vai muito além da rixa entre os partidos que governaram o país desde a redemocratização, como as correntes de Whatsapp teimam em simplificar e bestializar. O último presidente a visitar o museu foi Juscelino Kubitschek, quando o fóssil de Luzia, grande destaque da casa, nem havia sido descoberto.

Omissão não é privilégio de ideologia ou forma de governo. Aliás, se o museu carioca depende do governo federal, o prédio incendiado em Nova Déli é gerido por um grupo de lobistas e empresários indianos. 

O Brasil ainda não aprendeu o que Luzia já sabia 11 mil anos atrás. Com fogo não se brinca. Se fôssemos mais a museus – e se os que existem tivessem mais verba e apoio, em vez de arderem em chamas – talvez já saberíamos disso.

 

Fonte:Superabril