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Deveria ter escrito um só artigo sobre José Olívio e Luiz Eudes(Cangalha do Vento) que se chamaria “Conversa com os poetas”, ficaria muito longo, resolvi dividir e falar de cada um por vez. No entanto, notei que lendo Olívio compreendi Eudes, assim como lendo Eudes compreendi Antônio Torres. Tudo começa com os contadores de causos, e o que são os barbeiros senão contadores de causos. Olívio foi certeiro, a barbearia é o ambiente mais literário que existe, superando os balcões dos bares. Reina soberano porque não compete com as bibliotecas, pois aqui se trata da literatura popular e digo mais, de tradição oral, como eram no princípio os cordéis. E José Olívio é cordelista também.
Mas voltando um pouco, compreendo mais ainda Eudes lendo Olívio, porque ele sustenta a tese da poetisa Cristiane Alves de que a literatura de Sátiro Dias deve muito ao contadores de Causo. Deixando claro que ela e Luiz Eudes são dessa pequena cidade da nossa região. Minha avó, Maria Eremita Vieira Lopes, também era de lá e tia da mãe de Antônio Torres e do jornalista Humberto Vieira, minha mãe era prima de ambos, daí talvez venha meu microscópico talento para as letras, não suficiente para ser escritor, mas do tamanho para me virar sofridamente como jornalista. O livro de Olívio me lembrou de minha avó, que nos contava causos e nos ensinava músicas populares belíssimas, legado certamente de Sátiro Dias.
José Olívio é muito alagoinhense, mas nasceu em Catu, filho de Olívio Lima, funcionário da Petrobras, mas também carpinteiro e bodegueiro da Ramela, responsável com o irmão pela festa de Reis da localidade. Olívio já nasceu em ambiente cultural. A mãe biológica era Amélia Ramalho, dona Dai e a avó, uma rendeira retirante de Pernambuco. Uma linhagem perfeita para produzir um poeta, um querido poeta que sai pelas ruas de Alagoinhas em longos passeios, visitando os amigos e vendo a cidade se movendo, isso é “Conversa de Barbearia”. Vou falar um pouco desse livro e, se der, de alguns cordéis importantes, porque o Amendoim Torrado, seu outro livro de crônicas, li há bastante tempo. Seu primeiro livro foi Álbum Poético de Alagoinhas de 1985, são 36 anos de poesia e narrativas que mostram não só a vida de Alagoinhas e região como da Bahia, tendo significativa produção no segmento espírita, ligada à trajetória de Divaldo Franco.
No cordel, ele é impressionante ao colocar conceitos em sextilhas, saindo da expressão tradicional de narrativas, histórias e estórias, e da descrição de personalidades ou personagens. Sua referência tanto em crônica quanto em poesia é Carlos Drummond de Andrade e Castro Alves é seu autor de cabeceira. O vocabulário é refinado, mas não a ponto de esgarçar a tessitura da oralidade.
Em “Conversa de Barbearia”, ele faz o registro histórico de uma geração que poderia se chamar “os amigos dos nossos pais, dos tios caçulas” e da sua própria geração. Olívio fala de uma Alagoinhas antes da passagem do milênio, tanto que uma de suas crônicas trata disso. Também conta a história da cidade pela vida da gente comum, isso me parece o mais relevante de seu trabalho e do seu olhar, é um completo paralelo à história oficial. Trata da criatividade dessa gente, da inventividade, tanto que fala de seus artistas, mas vai até periferia e insere a moradora de rua, que residia em um sofá e da louca que fazia instalações belíssimas nas encruzilhadas da cidade, que, lembro, intrigava muito o nosso artista plástico Luís Ramos. Nesse livro está registrado o fazer do povo, sua engenhosidade, sua maneira de lidar com a vida que lhe era posta e de transformá-la em algo alegre, festivo, caloroso e humano.
Olívio vai lá no repositório humano da cidade, na sua matriz, no que lhe dá vida, esse personagem que pode ser chamado de um sertanejo urbanizado, um agrestino-litorânico, andando sobre as águas, em um mar de água. Não um povo lascivo, como o litorâneo, nem contido como o sertanejo, mas dado a ousadia e ao flerte “discarado”. O ambiente é masculino, como nas barbearias, mas há sempre uma passada de olho em um rabo de saia. E os amores clandestinos e os dramas das traições estão acondicionados, lembrando que os cornos de Alagoinhas são causos de desafiar a ficção, daria um livro “Mulheres fogosas e homens atrevidos”, com um capítulo especial para o “O homem que seduziu a freira”.
Olívio, claro, homenageia todos os barbeiros da cidade e fala da habilidade que todos tinham de contar os causos sem parar por um segundo com a tesoura. Sua linha melódica lembra Ariano Suassuna contando seus causos e também Drummond em “A morte do leiteiro” e “O caso do vestido”.
Na barbearia de Lílio havia um cartaz, “aqui se se reúnem caçadores, pescadores e outros mentirosos” . Um rapaz foi fazer a barba e como tinha o rosto murcho, o barbeiro deu-lhe uma bolinha para por na boca. Terminado o serviço, perguntou: – não acontece de engolirem a bolinha? Respondeu: – sim, mas devolvem depois. Um outro queria cortar só a barba e deixou clara sua vontade. No final foi perguntado: – o bigode vai ou fica? Ele disse: – fica. O bigode foi rapado devido ao duplo sentido e a briga foi grande.
A crítica social está presente em todo o momento: “Por que o governo matraca tanto os servidores, já que eles são, no final das contas, governo também?”. “Virou um moderado como acontece com um partido político intransigente quando na oposição, mas que quando chega ao poder fica brando”. Sobre o serviço psiquiátrico: “Tratamento antigamente era na base de choque e havia casos de pacientes ficarem até mesmo acorrentados”.
Lembrou de figuras marcantes como a professora Edil da Uneb, Zé Carlos, gerente do Cine Azi, Zé Libório, vereador por 24 anos, com seus 407 afilhados, que no fim da vida virou exímio contador de piadas, Raimundo Espinheira, radialista e cantor de serestas, Efeerre Dias, radialista e poeta, Ary Conceição, um grande intelectual e artista, pai da, não menos talentosa, fotógrafa Totinha, Luciano Lobo e tantos outros. “Tire seu voto da toca, vote em Noca”, lembrando da vereadora, uma das primeiras da cidade.
Como também percorre personagens emblemáticos como o cego vendedor de jornal, um paralelo a Jorge Luís Borges, que, já sem a visão, era diretor de uma importante biblioteca na Argentina. As tradições como a sexta-feira da paixão: “Todos acordávamos pisando diferente, porque era o dia em que Jesus morreu”; a festa da Mocidade na praça Santa Isabel. Ele consegue colocar no papel com maestria todo ambiente do jogo de dominó na praça JJ Seabra, aliás Olívio nos faz ver com nitidez a cena se desenrolando, como também no caso da moça que ele observa no coletivo. Recorda ao mesmo tempo das filarmônicas Euterpe e Ceciliana, que enchiam o local aos domingos, antes da televisão e fala ainda das sessões de cinema. O livro todo é muito engraçado, mas chega ser hilário, quando conta sobre como as pessoas trocam seu nome ou no caso do neto que queria ir para São Paulo.
Tem frases também marcantes, a que mais gosto “Alagoinhas é mesmo uma cidade burocrata”. Falando sobre a moradora de rua: “suas paredes eram o breu da noite”. Referindo-se a jornais velhos que amarelam, ele encaixa essa: “Quando menino e cheio de ilusão (ela também amarela com o tempo), costumava brincar de “Gueralt”(…). Ou essa bastante datada: “ouvir que um colega de pelada pegou uma menina “sem defeito nenhum”. Bom, “Conversa de Barbearia” cumpre ao que se destina, fazer a gente voltar no tempo, mais que isso, se sentir em outro tempo, que deu origem à geração do novo milênio e foi nossa régua e compasso. Para não dizer que não falei do cordel, prometo um artigo especial sobre eles.
Por Paulo Dias